Formiguinhas
No post de hoje, temos a alegria de trazer um conto de João Silvério Trevisan, que compõe o livro Testamento de Jônatas deixado a David (1976): Formiguinhas, cuja reprodução nos foi gentilmente cedida pelo autor. Trevisan é profundo conhecedor da literatura anarquista e admirador da obra de Han Ryner — o autor de nosso último lançamento, O Homem-formiga. A Ercolano teve, inclusive, a honra de estrear sua primeira obra publicada e traduzida, A Menina que não fui — também de Han Ryner —, com um prefácio de Trevisan, intitulado O menino que era rainha.
Em Formiguinhas, a breve narrativa nos faz lembrar da definição de Júlio Cortázar, segundo a qual o conto vence o leitor por nocaute, e não por cansaço, como no romance. O universo estranho deste conto dialoga com a mesma sensação de estranheza que se tem ao ler O Homem-formiga, ou seja, com um fascínio não isento de elementos macabros para com a animalidade.
Formiguinhas
O menininho não sabia que eram formigas. Por isso ficou vários dias ali parado, chupando o dedo e olhando o cordãozinho preto que caminhava pela parede branca, sem entender nada.
No primeiro dia, as formigas descobriram a barata morta num cantinho da sala. O reboliço foi geral entre elas. Saiu toda a população do minúsculo furo no chão da cozinha. Estavam todas em grande excitação, indo e vindo agitadamente e parando às vezes pra conversar umas com as outras, no meio de um caminho que nem mesmo elas pareciam saber qual.
Já no outro dia, elas cercaram a barata muito cedo e começaram a carregá-la como um andor numa procissão alvoroçada. Parecia que a barata tinha vivido outra vez, só que agora caminhando com as patinhas imóveis para o alto.
No terceiro dia, elas tentaram colocar a barata no furinho do chão da cozinha. A barata parecia um gigante medonho, de modo que não coube no buraco do formigueiro.
No próximo dia, a barata estava outra vez sendo carregada, já antes que o sol nascesse. As formigas viraram-na ao contrário e organizaram novamente a mesma procissão pagã até o formigueiro. Desta vez tentaram enfiar a barata com as patinhas para baixo, mas o buraco ainda era muito pequeno. Voltaram de novo e mudaram a posição da barata, com a cabeça para a frente. Nada de entrar, ela era mesmo monstruosa.
No quinto dia, as formigas pretas vieram ainda mais cedo e viraram a barata de lado. Mesmo assim não conseguiram enfiá-la no formigueiro. Ela continuava monstruosamente grande. As formigas retrocederam outra vez e tentaram outras posições impossíveis, durante o resto do tempo.
No sexto dia, elas mal descansaram e se reuniram todas muito cedo para uma assembléia, debaixo do fogão. Passaram todo o dia conferenciando em grande alvoroço, até anoitecer. E chegaram a um acordo.
No sétimo dia então, as formiguinhas todas juntas começaram a picar a barata em mil pequenos pedaços. Assim, quando o último restinho do sol se escondeu no horizonte, as formigas estavam colocando o último pedaço da barata no formigueiro.
No dia seguinte ao último, o menino ainda estava ali chupando o dedo e tentando compreender o cordãozinho preto. As formigas, que já sabiam, resolveram imediatamente chamar as vizinhas de cinquenta formigueiros da região. E porque já sabiam, carregaram em procissão o menininho que, ainda sem entender nada, continuava a chupar o dedo. Depois de vários meses trabalhando sempre unidas, as formiguinhas pretas conseguiram finalmente enfiar o menininho no formigueiro.
E descansaram.
Ciudad de México, fevereiro de 1975.
São Paulo, agosto de 1976.
Imagem principal: ilustração do livro O Homem-formiga
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.