Numa Praetorius escreve sobre “A Menina que não fui”

Eugen Wilhelm (Estrasburgo, 1866-1951) foi um advogado alemão e sexologista.
Jurista bilíngue em francês e alemão, Wilhelm é nomeado assessor no Tribunal de Estrasburgo, entre 1893 e 1908, quando pede demissão para evitar um escândalo envolvendo sua homossexualidade. A partir de então, recolhe-se da vida pública e se dedica a escrever sobre literatura. Em 1919, refunda a Revue juridique d’Alsace et de Lorraine.

Sob o pseudônimo “Numa Praetorius”, escreveu artigos e resenhas sobre homossexualidade e sexologia, sendo, junto com Hans Magnus Hirschfeld, um pioneiro nos estudos de sexualidade e gênero. Juntos conduziram também a publicação anual Bibliographie der Homosexualität [Bibliografia da homossexualidade].

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, descobre-se a verdadeira autoria dos textos assinados por Numa Praetorius. Em 1925, ele colabora com mais uma revista sobre homossexualidade: Inversions [Inversões].

O texto abaixo foi publicado nos Zwischenstufen unter besonderer Berücksichtigung der Homosexualität [Anais de estágios sexuais intermediários com ênfase à homossexualidade], VI, 1904, pp.625-628. Na resenha de Numa Praetorius, percebe-se uma leitura geral de La Fille manquée, um pouco precipitada, como se vê no emprego de nomes errados dos personagens e em certas evocações equivocadas do enredo.

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Numa Praetorius [Eugen Wilhelm]. Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen unter besonderer Berücksichtigung der Homosexualität [Anais de estágios sexuais intermediários com ênfase à homossexualidade], VI, 1904, pp.625-628.

Numa Praetorius
Ryner, Hans [sic.]. La Fille manquée. Paris, 1903, Genonceaux et Co.

Ainda menino, François de Taulane ingressa numa escola administrada por padres. O onanismo mútuo impera de todas as maneiras na instituição. A maioria dos professores e todos os alunos se entregam ao vício. Uma precoce e vaga necessidade de amor desperta em François. Ele se recorda das carícias inocentes do tio, seus sonhos são povoados pelas imagens de seus colegas favoritos, e ele não demora a atender às pulsões sexuais daqueles que o cercam.

François rechaça as tentativas de sedução de um professor assim como foge dos braços do enérgico e feio Roman[es], que “pode aproveitar das alegrias sem amor”. Após dois colegas pelos quais ele nutre sentimentos profundos deixarem a instituição, ele transfere seu amor a Dargant [sic. leia-se Davignon]. Dargant talvez seja o primeiro garoto que François tenha amado de verdade. Mas François se ilude a respeito de Dargant, que tão somente quis satisfazer sua própria vaidade; Dargant se vangloria aos quatro ventos por ter conquistado François, que até então tinha fama de ser arredio e orgulhoso.

Ferido em seu sentimento e em seu amor, François já não quer mais se prender a ninguém e se torna o amante de todo e qualquer colega que se candidatar. François também passa a ser o mais desejado, o mais cortejado da escola. Um após o outro pode tê-lo. Mas François se relaciona com apenas um deles, e por apenas um deles sente atração profunda, a saber, pelo robusto Pierre [sic. leia-se Jean Provençal]. Pierre estava doente, e quando começa a reparar que François muda de comportamento, volta a François depois de ter reconvalescido. Mas Pierre o trata com desprezo, como a uma prostituta. Porém, François se deixa seduzir por tudo o que vem de Pierre; sua brutalidade em meio às carícias só fará crescer a dependência de François e seu desejo de se submeter como um escravo ao amado Pierre.

Ao concluir a escola, François se apaixona por uma prima que corresponde ao seu amor. Ambos vão para o campo, onde Lisa se entrega a François que, no entanto, é incapaz de manter relações sexuais normais. E, quando de fato ocorre uma tentativa bem-sucedida, François cai doente por vários dias. Ele paga por todo esforço ulterior com uma crise de fraqueza que o esgota. Lisa aguenta ficar junto a François por muito tempo, com amor e paciência, mas seu amor se esfria aos poucos ao lado de um homem não masculino. Um belo dia, ela desaparece com Pierre, que havia chegado para visitar o casal.

François tenta despertar sua masculinidade relacionando-se com prostitutas, mas seus esforços são em vão; por fim, encontra uma ginandro(1), uma prostituta parecida com um garoto que consegue retê-lo por semanas, já que ela se contenta com outras carícias diferentes das normais, impossíveis para François, e ele é correspondido. Mas, um belo dia, ela também o abandona para ir atrás de um homenzarrão.

François se amolece cada vez mais, a mulher passa a ser motivo de asco total para ele; apenas estátuas masculinas despertam seu interesse, e ele vai ao encontro de seu prazer vestindo-se com roupas de mulher e usando maquiagem. Porém, já não querendo mais se entregar às carícias masculinas, ele trava uma luta consigo mesmo. Um dia, recebe uma carta de Pierre, que está triste e arrependido, na qual este afirma querer “voltar ao único coração que o ama, que manifesta a única verdadeira beleza”. François sabe que não poderá resistir à sua pulsão e que acabará caindo nos braços de Pierre. Porém, ele quer fugir dessa pulsão, que entende como torpe, e se mata.

Um livro falho, desnorteado, no limite do pornográfico sob certos aspectos, pouco recomendável; é falho, em todo caso, essa menina falha.

A intenção do escritor não fica clara. No que diz respeito à representação de costumes de vícios juvenis, merece críticas por sua inverossimilhança e por seu exagero. Ainda que em muitos institutos possa reinar um descontentamento nas relações sexuais — eu mesmo jamais conheci comportamentos semelhantes em minha juventude —, ainda duvido que haja institutos nos quais existam tal desbarato e tal paródia do amor entre meninos. Essa inverdade seria perdoável, se a representação dos estados dos costumes ao menos pudesse ser encontrada em uma encarnação artística, algo como a maneira exagerada de Zola representar o amor. Ora, em vez disso, a narrativa inteira gira em torno de cada uma das formulações incapazes de cativar e de uma obstinação mesquinha à imunda confusão do herói.

Mais do que uma representação de costumes, havia a tentação de compor o livro como um estudo sobre os efeitos nefastos que os pecados da juventude exercem sobre a situação de vida posterior do “herói”. Porém, como o próprio título já diz, ele não se torna homossexual por meio de tentações ou maus hábitos, em absoluto, mas pelo fato de ter nascido homossexual. Em diferentes passagens, o escritor aponta para a tensão entre sua alma feminina e seus órgãos genitais, entre sua sensibilidade feminina e seu corpo masculino.

Mas mesmo sem os maus hábitos da escola, o homem nascido homossexual, que já antes de ingressar na instituição sonhava com muitas carícias, jamais fora capaz de se comportar conforme um homem de verdade.

Por isso, justifica-se somente a caracterização da menina falha, bem como a representação da desarmonia e da desgraça do homossexual nato, que, ao contrário dos outros estudantes, não embarca em sensualidade viciosa e jogos sexuais, mas está condenado a perseguir, por toda sua vida, um ideal inalcançável; que já era ávido de amor na juventude, mas que não o encontrará com os colegas de vício, muito menos depois, com mulheres.

Enfim, algumas passagens também contêm muitos traços que servirão para compreender a psicologia do jovem uranista e que tencionam despertar certo interesse. Entretanto, foi completamente inútil e supérfluo, em se considerando o livro sob este ponto de vista, preencher dois terços do romance com extensas representações das alegrias sexuais das crianças. Que não se sustente, assim, a convicção de que isso tenha a ver com impuras segundas intenções do autor, uma ideia que o abjeto desenho da capa sugere: um monge, tarado e feio de dar dó, que segura um belo menino em seu colo.

(1) Termo comumente usado na zoologia para designar seres vivos não plenamente desenvolvidos, sobretudo insetos, que demonstram características tanto masculinas quanto femininas; do grego gynandros “de sexo dúbio”, “andrógino”, “hermafrodita”.

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