Prefácio da edição francesa de “Lord Lyllian: missas negras”

MISSAS NEGRAS. Lorde Lyllian é um romance com chave onde reconhecemos sem esforço Oscar Wilde (Harold Skilde), Jean Lorrain (Jean d’Alsace), Joséphin Péladan (O Sar Baladin), Achille Essebac (Achille Patrac), Robert de Montesquiou (M. de Montautrou), as atrizes Ellen Terry (Ellen Sherry) e Sarah Bernhardt (Corah Vieillard) e mesmo o industrial Krupp (Supp). Os dois primeiros forneceram os modelos em que Fersen se apoia: The Picture of Dorian Gray (1891), que aparece no seu romance com o título parodiado: O Retrato de Miriam Green; e Senhor de Phocas (1901). A bela capa da edição original do romance de Fersen por Claude Simpson não fica, aliás sem recordar a de Geo Dupuis para o romance de Lorrain: mesma postura relaxada, mesma melancolia do olhar, mesmo cenário Art Nouveau. Romance “tedioso e triste”, o próprio autor escreve de seu livro na dedicatória. Esta endereçada a um “Antigo Juiz de Instrução”, provando assim que o romance poderia interessar à Justiça.

O livro, contrariamente a outros que abordavam o mesmo assunto (O Senil, de Dubut de Laforest ou Escal-Vigor de Georges Eekhoud), não foi, no entanto, perseguido. Estaríamos enganados em considerar que Fersen limita-se a fazer a apologia das amizades particulares. Certamente as páginas do capítulo XXII são perfeitamente explícitas: “[…] paixão estranha se quisermos, mas real e capaz de criar os mais belos entusiasmos, todo o mistério e sofrimento que os imbecis qualificaram de contranatureza porque eles não a compreendiam”. O retrato pouco lisonjeador de Oscar Wilde poderia servir de contraponto a este lirismo: “Muito grande, gordo, pouco distinto de sua pessoa, […] a figura mais ordinária do mundo”. A evocação do escritor decaído após a prisão de Reading é pior ainda: “este velho homem, inchado, desarrumado e feio”, “grotesco e patético”. Mas, talvez mais do que este aspecto, no fim das contas seja anedótico, o retorno sobre si mesmo e sobre a sua existência que Lyllian faz em várias reprises pode parecer significativo: “Um grande repúdio veio-lhe de sua vida atual, um grande desejo de acabar com ela e  de melhor recomeçar”; “e pela segunda vez veio-lhe um repúdio de sua vida e de sua juventude  desperdiçada em inúteis e doentias curiosidades”. Sabemos que o romance devia terminar com o casamento de Lyllian: “Eu vivi muito esta vida, Alteza, para ter compreendido os erros, as desilusões e as degradações”, ele declara ao grão-duque Sacha de Livônia evocando a lembrança de Harold Skilde-Oscar Wilde. Desejo de se proteger da censura ou das perseguições após “as orgias da avenida Friedland”?

O romance, não é uma surpresa, é nutrido de Baudelaire. Renold recita, ele mesmo, o Convite à viagem e A Morte dos Amantes em uma reunião, evocando talvez a reunião na casa de Ethal em Senhor de Phocas (“Nós lemos Jean d’Alsace”!), onde Maud White declama Baudelaire e Samain. Além disso, ele faz recitar ainda Baudelaire pelo “o jovem Moreno”. De Baudelaire provém também talvez a descrição do verde paraíso dos amores infantis com a jovem Edith Playfair (é necessário ver neste nome um símbolo?), lembrados de tempos em tempos como um aviso, um signo, uma promessa não cumprida? Sonho logo desmentido pelo reflexo de um Narciso distorcido percebido no espelho.

O romance de Fersen se desdobra com efeito em um fundo de mitos entrecruzados: Ganimedes, Adonis, Narciso contribuindo para fazer do herói um personagem composto, uma soma de figuras ambíguas. Seu jovem amante sueco sonha em ter em seus braços “Adonis, ele mesmo, Narciso, úmido e fresco dos beijos na fonte onde as ninfas o espreitaram, Baco sorrindo para as suas faunas, Ganimedes invejando o céu, Apolo coroado de orvalho”. Fersen reencontrará estes mitos dois anos mais tarde, quando Milès, em O Beijo de Narciso, escutando os versos de Homero, “perseguia no mar ideal a frota que ia para Troia, oferecia a ambrósia no lugar de Ganimedes, debruçava-se sobre a água lívida para saber se Narciso estava morto”. Milès se dedicará mais tarde ao culto de Adonis. O mito de Narciso parece neste conjunto se revestir de uma importância particular. É olhando a sua nudez no espelho que Renold ganha consciência de sua natureza profunda, transpondo ao mesmo tempo em uma masculinidade problemática o motivo bem conhecido da mulher no espelho (Zola, Dubut, Lemonnier, Rops). O que o tema do reflexo no espelho trazia já se vê reforçado pelo jogo da ilusão teatral: Renold desempenha Narciso na peça com este nome escrita para ele por Harold Skilde; ele encarna verdadeiramente Narciso nos palcos: “Você beijava a sua sombra que tremia nos espelhos: Seja Narciso…

A psique do seu quarto de criança no Castelo Lyllian (cap. III) encontra a sua resposta na psique de seu camarim no teatro (cap. IV). “O jovem homem postado diante dos espelhos, repetia o seu papel como um louco e ele estava de tal maneira identificado com Narciso que os seus olhos do azul dos lagos longínquos estavam mortificados por causa do seu inquietante amor”. A representação é um triunfo. Narciso reaparecerá mais tarde no romance, seja ligado a Adonis, seja em oposição à Messalina. Ele parece ainda presente nesta nota de Lyllian, apaixonado pela sua própria beleza como uma criatura de D’Annunzio: “No dia em que no espelho eu descobrir a minha primeira ruga, no dia em que eu não serei mais o ‘boy’ que eu sou, […] oh, então, meu querido, isto será a demissão”.

O romance e o seu herói aparecem como uma curiosa mistura da veia antiquista e da modernidade. Renold figura igualmente como uma “cortesã grega” e uma “estroina moderna”; a Acrópole avizinha com o Moulin Rouge, os bosques de Academo com o Boulevard. O romance retrata tão bem a Grécia antiga ou o Baixo Império romano quanto a vida parisiense ou londrina. Lyllian é Heliogábalo, Harold Skilde, Augustule,“o último postiço de César”, “um tipo de imperador romano que virou jornalista”, reconstituindo Paestum em Oxford! À festa antiga organizada na Grécia por Harold Skilde, onde Lyllian deve ser “o Adonis sonhado pelas mitologias pagãs”, sucedem sem transição uma medíocre representação teatral em Drury Lane e uma noite em Edward Street em um bordel com quartos reservados: o “vício inglês” segundo Villiers  ou D’Annunzio. E o cortejo helênico das dançarinas de Lesbos dá lugar aos cafetões e aos criminosos do baile Wagram. É nesta festa em um café popular com má fama que Lyllian e o seu guia se propõem a restaurar “Capri inteira”, após ter evocado, algumas páginas acima, a sombra de Tibério, e que os notáveis se misturam à canalha fazendo “os gestos, como os dos afrescos de Pompeia”, enquanto que dois efebos ambíguos espalham violetas sobre a sua mesa “por imitação de Nero”! E para completar o quadro digno de Suetônio, um dos convivas tem “uma cabeça de Vitélio arruinada na porta”. A coexistência de um passado prestigioso e de um presente sórdido é aqui erigida em sistema. Os “paganismos romanos”, os “cortejos suntuosos dos arcontes da Grécia” acabam em uma sala de baile do submundo, cujo corredor de entrada lembra “o de um estabelecimento de banhos em falência”. Renold Monrose, lorde Lyllian está à vontade tanto em um mundo quanto no outro.

Mas Sodoma, Baudelaire e “as litanias do pobre velho Verlaine” não seriam suficientes para fazer do romance de Fersen um livro de Decadência, se não se juntasse a ele uma  tópica do romance do fim do século: a dos retratos de ancestrais contemplando o último da linhagem. Fersen a encontrou na “Notícia” do livro “Às Avessas” e no capítulo XI do livro The Picture of Dorian Gray. O alcance é sempre o mesmo: “Os ancestrais o esmagavam. Ele não era mais do seu tamanho”. O habitual desfile de caserneiros e de retres, pirata, guerreiro, cortesão, monteiro, almirante, e seu catálogo de altos feitos, situado aqui, como em Wilde, na Inglaterra, fecha-se com um efebo com o sexo indeciso que não merece nem mesmo o nome de macho. Renold é somente “este herdeiro doentio e com nevrose que não trazia nada à glória do nome”. Toda a história da Inglaterra, desde o Norrois primitivo, Warwick, o King-maker, Elisabeth, os Stuart até a rainha Victoria resulta assim a uma triste Modernidade. A severidade dos retratos é de rigor em semelhante circunstância . “Acordados de seu sono secular por chorarem o fim da sua raça”, os ancestrais parecem, nas suas molduras de carvalho, maldizerem e negarem a sua degenerada descendência. “Ele tinha, como eles, conseguido vitórias, deixado correr na história o estilo da sua pluma?… Não”. Ao final destas páginas, que são as mais fortes do romance, Renold deixa a galeria pedindo perdão, e em plena consciência, de novo, “de todo o mal que tinha feito, de todo o bem que ele tinha gastado, de todo o tempo que ele tinha perdido”. É a “expiação”.

Como o protagonista, o próprio romance aparece composto: ao mesmo tempo romance de aprendizado e romance de viagem (da Escócia natal, Londres, Paris, Grécia, Itália, Veneza, Florença, Nápoles e Sicília), romance de costumes, documentário sobre a homossexualidade, talvez romance semiautobiográfico (o nome mesmo de Fersen é pronunciado, distante do próprio autor, e o breve idílio com o jovem tísico sueco chamado Axel Ansen lembra o nome do ilustre ancestral, “cavaleiro da Rainha”), enfim, romance literário, pela importância dada à duas figuras importantes das letras finisseculares Jean Lorrain e Oscar Wilde. Fersen inclui mesmo no romance uma “falsa carta” de Oscar Wilde do tempo dos trabalhos forçados. O retrato que ele faz de Jean Lorrain é mitigado: ele o descreve, os “olhos com verrugas”, “acariciando os anéis que ele tinha como acariciava os seus olhos”, “tocando de maneira distraída os seus dentes”, autor de palavras cruéis sem rodeios (um marquês de Sade ideal… mas retocado por Malthus. Você seria Talleyrand nos hard labour, a carne destas damas está passada), corrupto e dizendo-o muito elegantemente, deixando-se pilotar em Veneza em maus lugares onde ele se rende como no sacerdócio, apreciando conhecedor a nudez de Lyllian, amador de histórias macabras, cronista de vício e acabando por escrever as memórias de comissário de polícia, eloquente na ocasião, “melancólico e conversador”, sobre Ticiano e Veronese. Um detalhe picante é a sua aparição indiscreta no hotel onde está hospedado Lyllian em Veneza, onde ele entra com “topete”, “como no Moulin”. Pois, nós possuímos sobre este ponto a versão de próprio Lorrain, em uma carta para Pierre Valdagne, e ela é diametralmente oposta: “Eu conheci M. d’Adelswärds em 1901 em Veneza; ele fez de tudo para me ver, escreveu-me, veio me perseguir no hotel e foi muito maçador, você lerá a coisa ao longo do Diário desses dias”. A realidade e a ficção, Jean Lorrain e Jean d’Alsace não correspondem sempre.

Jean de Palacio*

 

*Jean de Palacio, professor emérito na Sorbonne, dedicou à literatura da virada do século e ao espírito de Decadência um conjunto de trabalhos, incluindo Pierrot fim de século (Séguier, 1990), As Perversões do Maravilhoso (Séguier, 1993), Figuras e Formas da Decadência (2 vol. Séguier, 1994 – 2000), O Silêncio do Texto (Peeters, 2003), Configurações Decadentes (Peeters, 2007). Ele próprio publicou Correspondências  de Jean Lorrain (Champion, 2006).

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