Reynaldo Hahn escreve sobre Manet em seus diários inéditos no Brasil

Publicamos abaixo a tradução de dois trechos extraídos dos diários de Reynaldo Hahn (1874-1947). Compositor, chefe de orquestra, cantor e crítico musical francês de origem venezuelana e judia, Hahn também foi o principal companheiro de Marcel Proust (1871-1922).

Em seus diários[1], Hahn discorre sobre diversos temas no campo das artes, como música, dança, literatura e pintura. Nestas duas entradas, escritas provavelmente em janeiro de 1896, ele registra suas impressões sobre, entre outros artistas, Édouard Manet. A partir destes relatos, compreende-se que a pintura de Manet, longe de constituir imediatamente unanimidade de crítica, traz à pintura ocidental uma ruptura importante que o insere na modernidade, a qual Hahn parece comparar à de Baudelaire, na literatura.

 

[Paris, janeiro de 1896 ?]

Fui à galeria de Durand-Ruel[2] ver os quadros de Monet que Marcel tinha me recomendado; fiquei encantado — sobretudo com dois deles: um jardim no verão, povoado de grandes girassóis em vasos azuis com alguns degraus ao fundo, sobre os quais duas crianças estão em pé. Toda a cena é impregnada de muito sol[3].

O outro é uma paisagem aquática[4], um pequeno rio entre duas margens floridas sobre o qual passa um barco leve — as árvores, a água, a margem, o céu, as figuras, tudo se mistura, tudo se confunde em um supremo “dolcissimo”.

Há também Banhistas no Grenouillère, um Monet mais antigo que é quase um Manet, menos bonito, mas extraordinário, de umidade marulhante[5].

Eu passo os quadros de Renoir, dos quais eu não gosto muito. Acho que as suas carnes são falsos Rubens, sanguíneas demais, de pele curta. A rosácea ameaça todas essas pessoas.

De Manet, há vários quadros entre os quais nem todos me agradam igualmente. Primeiro, o grupo encantador do homem e da mulher sentad[a] sob as palmeiras, com um chapéu e um vestido de verão, o conjunto muito harmonioso, de coloração delicada, um pouco sombrio, de grande distinção[6]. O vestido que vejo, como me faz notar Mallarmé, tem exatamente o que é preciso ter de gentileza, de modernidade parisiense para ainda ser absolutamente arte, para parar no limite do comum; o vestido é cinza, plissado, a execução é perfeita. Os olhos e a figura são frescos, encantadores, vivos (talvez os olhos sejam um pouco fixos, um pouco serenos), o homem — um pouco retirado — também é interessante; a mão que segura o charuto, mesmo sendo defeituosa, atrai e mantém o olhar; e eu dizia a Mallarmé, que viu esse quadro ser pintado e que foi com Manet comprar perto da Bastilha o banco azul onde está sentada a mulher, que as palmeiras e as outras plantas que formam o fundo desse discreto diálogo pareciam ter a cor necessária para se adaptar bem ao vestido, ao banco, ao chapéu e a tudo. Maravilhosa doçura de todos esses tons reunidos que contêm tantos tons diferentes. Mas, apesar de tantas qualidades admiráveis, há algo que me incomoda. É a secura do tratamento, o desdém de algumas tarefas obscuras e necessárias? É simplesmente a inépcia no desenho ou na pintura, a ignorância de um procedimento ou o desprezo do efeito amável que dá a todas as obras desse mestre algo com um aspecto de papelão, de seco? Essas pessoas são de madeira? Por que tanta verdade nas coisas insignificantes e tão pouca nas coisas importantes? Por que, no grande quadro do almoço na relva[7], as botas dos homens estão tão mal pintadas, tão rígidas, tão negras? Por que o pão tem um relevo exagerado que lhe dá um aspecto de um acessório de teatro? (Este mesmo gênero de relevo tão seco, tão brutal, está presente em todas as telas de Manet, salvo, talvez, nas telas do grupo a que eu tinha me referido). A paisagem é deliciosa.

Não aprecio nem compreendo Nana. É um Grévin[8] sem alma? É verdadeiramente artístico? Não creio. Em todo o caso, a parte de baixo do corpo da mulher, seus pés, seu espartilho, sua fisionomia (tão pouco verdadeira) e a pintura do conjunto parecem-me discutíveis. E também algumas partes do mobiliário.

[Paris ?, janeiro de 1896 ?]

Manet é o único pintor que lembra verdadeiramente a linguagem familiar de Baudelaire.

 

Tradução: Zervane de Farias Nascimento

[1] BLAY, Philippe (éd.) ; HAHN, Reynaldo. Journal : 1890-1945, anthologie établie, présentée et annotée par Philippe Blay, sous la direction de Jean-Yves Tadié, préface de J.-Y. Tadié, postface de Mathias Auclair, [Paris] : Gallimard, Bibliothèque nationale de France, 2022. (N.E.)
[2] Fundada por Paul Durand-Ruel, na época esta galeria parisiense estava situada na rua Le Peletier, 11 e na rua Laffitte, 16.
[3] O jardim do artista em Vétheuil (1881), Washington, National Gallery of Art.
[4] O barco (1887), Paris, museu Marmottan.
[5] Banho no Pântano (1869), Nova Iorque, The Metropolitan Museum of Art. “La Grénouillère” é o nome de um restaurante situado às margens do Sena. (N.E.)
[6] Na estufa (1879), Berlim, Alte Nationalgalerie.
[7] O almoço na relva (1963), Paris, Museu d’Orsay.
[8] Referência ao então recém-fundado Museu Grévin de figuras de cera, concebido por Alfred Grévin, Arthur Meyer e Gabriel Thomas, em 1882. (N.E.)

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