Trechos não publicados de Han Ryner – “A Menina que não fui”
Apresentamos aqui um rascunho de Ryner que acabou não fazendo parte da versão definitiva de La Fille manquée. O trecho consta no apêndice da reedição francesa do romance, de 2012.
Este devaneio de François provavelmente figuraria na terceira parte, quando ele visita o Louvre e dá início a uma digressão sobre a androginia nas pinturas Baco e São João Batista, de Da Vinci. No trecho, não isento de ambiguidades sintáticas, o louvor ao andrógino toma proporções hierofânicas, lembrando o mito de Eros contado por Aristófanes no Banquete de Platão, no qual é evocada a divisão da humanidade em três gêneros.
Além disso, chama a atenção a expressão do narcisismo de François. Ele se identifica com as pinturas, revelando, inclusive, um amor ao corpo feminino. Ora, no contexto do romance, essa passagem surpreende o leitor, pois contradiz aquele violento parágrafo que abre a terceira parte do romance, no qual François destila suas impressões misóginas sobre a fisiologia feminina. No trecho abaixo, pelo contrário, François confessa o amor pelo andrógino que tende ao feminino — amant presque amante (“amante-homem quase amante-mulher”). Assim, confessa certo amor pela mulher e por si mesmo como mulher, a ponto de afirmar ser mais mulher do que ambas as representações nas pinturas de Da Vinci.
É digno de nota o uso do termo jalousie (“ciúmes” ou “inveja” em francês) no último parágrafo da primeira parte do texto abaixo: François sente ciúmes ou inveja das feições andróginas de São João Batista e Baco, com os quais ele fala diretamente no vocativo, tratando cada um deles por “tu”, para depois evocar a si mesmo. Expressão de seu desejo ou de seu espelhamento?
Agradecemos à GayKitschCamp e ao blog http://hanryner.over-blog.fr por terem resgatado esse documento.
Confira a seguir o manuscrito traduzido.
Um sonho com Leonardo da Vinci
Detive-me, Da Vinci, diante de teu Baco; detive-me diante de teu São João e, por duas vezes, sonhei com François de Taulane.
Deus criou o homem; Deus criou a mulher. Mas desde que Hermes e Afrodite morreram, apenas tu, Da Vinci, soubeste criar — mais belo que o homem e mais graciosa do que a mulher — homem-mulher.
Porque pintaste Baco, ó Da Vinci, porque pintaste São João; por meio de não sei qual mistério, François de Taulane pôde nascer.
Vejo teus olhos profundos, François de Taulane, quando olho para os olhos desenhados por Da Vinci. Mais belo que o da Mona Lisa e mais belo porque orna lábios quase masculinos, o sorriso de Baco exprime para mim o teu sorriso sinuoso, e o sorriso de São João repete para mim os lábios entreabertos de François de Taulane.
E, uma vez que François de Taulane me elegeu como amigo, toquei tua garganta descoberta, mais bela que a de uma mulher, ó São João, ó Baco; e assim como meus olhos, gozaram, entre minhas mãos e meus lábios, de todos os segredos maravilhosos do corpo de vocês.
Corpo que permaneceu pueril, corpo de graciosidade e de encanto, em quão fresca e maleável harmonia mesclas uma voz quase de mulher a uma voz quase de homem!
Ó João, ó santo quase mulher, Da Vinci falou demais sobre o segredo de teu busto para a banalidade dos olhares. E tu, Baco, deus quase mulher, ah! Quão descoberto foste pelo amante indiscreto, que mal deixou um véu por cima do mistério.
Mas meu ciúme, manto obstinado, cobrirá tuas linhas suavemente titubeantes, ó tu, mais mulher que os outros dois, ó amante-homem quase amante-mulher, ó meu Taulane.
– –
Jean Provençal!… Essa lembrança é um licor no qual se agitam, borbulhantes em virtude de um abalo recente, tantas doçuras e tantos amargores, tantas alegrias, tantas vergonhas, tantas raivas mudas.
Sem dúvida, Louis[e] ignora o sofrimento que me causou ao falar de você esta noite, e que as palavras dela vão me matar. Jean, você não sabe que tais gestos seus estão apoiados no gatilho da pistola apontada para mim. O quadro que Louise traçou sobre sua moral me incita a morrer e, por essa boa ação, eu lhe perdoo, Jean, as vergonhas pelas quais você me fez corar, as dores que você […]
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