O Salão oficial de 1880
Prosseguindo na crítica de arte de J.-K. Huysmans sobre a obra de Édouard Manet nos salões oficiais, trazemos abaixo os trechos em que Huysmans analisa três telas de Manet expostas no Salão de 1880, com sua óptica mordaz. Ao passo que Huysmans reconhece as características inovadoras do pintor, tece certas considerações menos elogiosas sobre alguns problemas que aponta em sua arte.
J.-K. Huysmans
O Salão oficial de 1880 [trechos selecionados]
Por motivos que desconheço, o senhor Manet expõe nos âmbitos oficiais. Ele até costuma ter, e por motivos que desconheço ainda mais, um quadro a cada dois de vigia, em primeiro plano nos salões. É muito estranho que se tenha decidido de comum acordo colocar um artista cuja obra preconizava a insurreição e tencionava nada menos do que varrer os lamentáveis emplastros dos enfermeiros da velha arte! Porém, desta vez, a comissão se organizou de modo a colocar no terceiro andar um refinadíssimo quadro do pintor: No restaurante do pai Lathuile [Chez le père Lathuile, 1879], ao passo que descia, para o térreo, um retrato menos refinado, feito pelo mesmo artista: o Retrato do senhor Antonin Proust [Portrait de M. Antonin Proust, 1880], executado com requinte, mas vazio e repleto de lacunas; com pesar, constato que a cabeça parece iluminada por dentro como uma lâmpada noturna e que a camurça da luvas foi inflada, mas não contém carne alguma. Entretanto, no Pai Lathuile, o rapaz e a moça são magníficos, e essa tela, tão clara e tão viva, surpreende, pois se realça no meio de todas as pinturas oficiais que rancificam tão logo os olhares se voltam para ela. Aí está o moderno sobre o qual falei! Numa verdadeira luz, a céu aberto, as pessoas almoçam, e é preciso ver como a mulher, de cara emburrada, está viva; como o rapaz, atencioso perante essa boa, ou melhor, essa má sorte, tem uma postura falante e fiel! Eles proseiam e nós sabemos muitíssimo bem que inevitáveis e maravilhosas banalidades estão trocando nesse tête-à-tête, diante dessas taças de champanhe, observados pelo garçom que, do fundo do jardim, está preparado para anunciar, com estardalhaço, a chegada de uma turva infusão preta em uma cafeteira suja. É a vida, representada sem entusiasmo, assim como ela é, em virtude de sua própria verdade, uma obra galharda, única do ponto de vista da pintura moderna nesse exagerado salão. Outras, igualmente ousadas, também foram reunidas pelo pintor em uma exposição particular. Uma delas, A toalete [La toilette, 1862], representa uma mulher vestindo um decote e projetando-se à saída de seu peitoral, um pico de coque e um pedaço de narigão, enquanto ela sente com todo o nariz o perfume da prostituta que nos é cara. Revestir seus personagens com o cheiro do mundo ao qual eles pertencem: essa é uma das mais frequentes preocupações do senhor Manet.
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Sua obra clara, limpa da terra de múmia e do suco de cachimbo que durante tanto tempo emporcalharam as telas, tem quase sempre um toque carinhoso por baixo de sua aparência valentona, um desenho conciso, mas vacilante, um buquê de marcas vivas em uma pintura argêntea e loira. Assim também, vários retratos em pastel fazem parte dessa exposição, a maioria em tons muito sutis, mas — também é preciso dizê-lo — inanimados e vazios. Como sempre, com suas grandes qualidades, esse artista permanece incompleto. Entre os impressionistas, ele contribuiu fortemente para o movimento atual, trazendo ao realismo que Courbet implantava sobretudo pela escolha dos temas, uma revelação nova, uma experimentação ao ar livre. Resumindo, Courbet se limitava a tratar com fórmulas costumeiras, embelezadas pelo abuso da espátula, dos temas menos convencionais, menos favoráveis e por vezes até mesmo mais tolos do que os dos outros; Manet abalava todas as teorias, todos os usos, conduzia a arte moderna a um caminho novo. Aqui acaba o paralelo. Courbet, apesar de seu velho jogo e de sua ignorância dos valores, era um destro operário; Manet não tinha nem os pulmões nem os rins robustos o bastante para impor suas ideias através de uma obra forte. Mal tendo se livrado dos pastiches que resgatam Velázquez, Goya, Theotocopuli [El Greco] e tantos outros, ele vagueia às cegas; indicou os trilhos a serem seguidos enquanto ele próprio permaneceu parado, estacionado diante dos álbuns do Japão, debatendo-se com os balbucios de seu desenho, lutando contra o frescor de seus esboços que ele estragava à medida que trabalhava neles. Resumindo, hoje o senhor Manet está ultrapassado pela maioria dos pintores que puderam considerá-lo outrora, e legitimamente, como um mestre.
Tradução: Régis Mikail
Preparação: Eduardo Valmobida
Imagem principal: Chez le père Lathuile, Édouard Manet, 1879 (Crédito: The Yorck Project (2002) 10.000 Meisterwerke der Malerei (DVD-ROM), distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH)
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