A poesia visual de “Homem com homem”

Em Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI, antologia organizada por Ricardo Domeneck, 21 poetas exploram a homoafetividade masculina por meio de poemas diversos. A obra, no entanto, não se restringe aos textos e também apresenta de forma imagética o lirismo gay. Cinco artistas visuais participam da edição, entremeando os poemas com seus retratos, polaroides, ilustrações e assemblages. São eles: os brasileiros Nino Cais e Marcelo Amorim, o francês Lucas Bihler e os alemães Paul Mecky e Eugen Bräunig. Nos depoimentos abaixo, quatro destes cinco artistas contam sobre sua relação com a poesia e como se dá o fazer poético através da imagem e da fotografia em seus processos criativos. Confira!

Marcelo Amorim (Brasil)

“Poesia, para mim, sempre foi menos sobre dizer e mais sobre permanecer. Permanecer em silêncio, permanecer atento. É nesse gesto de escuta, muitas vezes solitária, quase sempre imprecisa, que me reconheço. Conexão, se é que existe, acontece aí: entre o que não se diz e o que ainda não foi ouvido. Com o outro. Com o mundo. Comigo mesmo.

Nas artes visuais, esse impulso não muda muito. A imagem no contexto da arte, para mim, é uma forma de poesia, mas não no sentido de metáfora ou tradução. Ela não instrui, não exige entendimento. Ao contrário da linguagem da comunicação, que opera na lógica da clareza, a imagem se move por fendas. Ela sugere. Ela escapa. E é exatamente nesse espaço de suspensão — esse intervalo onde tudo pode significar e nada precisa — que o meu trabalho encontra lugar.”

Lucas Bihler (França)

“Minha conexão com a poesia é fluida, como a luz que se move através de uma lente. Embora frequentemente eu tenda a preferir histórias e romances, a poesia me convida a me entregar, a deixar o significado se revelar em vez de correr atrás dele. Encontro a poesia não apenas nas palavras escritas, mas nos espaços silenciosos entre elas, no ritmo das interações humanas, nos olhares fugazes e nos momentos não ditos que moldam os nossos dias”.

“Para mim, traduzir poesia em uma imagem não se trata de capturar o que se vê, mas o que se sente. É um ato de ver além do visível, de perseguir o fugaz, o não dito, o suspiro entre os momentos. Nem toda fotografia carrega poesia, assim como nem todo poema ressoa em todos os que o leem. Mas dá para saber quando uma imagem carrega poesia consigo; ela desperta algo indescritível. Nem sempre a poesia é encontrada na composição ou na técnica de uma imagem. Ela está presente no sentimento que evoca, no silêncio que carrega, na forma como permanece junto de você para além do enquadramento. Algumas fotografias podem parecer simples, mas, para determinado espectador, podem desbloquear algo profundamente pessoal, algo que não pode ser expresso em palavras.

Quando tiro uma fotografia, não estou apenas compondo uma imagem. Estou buscando o rastro de algo que, senão, poderia escapar. O peso de um olhar, o silêncio de uma tarde, a maneira como a luz se demora antes de desaparecer. A poesia nas minhas fotografias nem sempre é intencional ou óbvia, mas quando se revela, está sempre ligada ao momento em que apertei o obturador, à imobilidade, ao movimento, à dor silenciosa de querer agarrar algo efêmero. Talvez seja isso que torne uma fotografia poética, não apenas o que ela revela, mas o que ela deixa para trás.”

Nino Cais (Brasil)

“De alguma maneira, eu sempre tive desejo ou alguma aproximação com a escrita, embora eu não seja o maior especialista em escrever, né? Mas a poesia sempre foi cruzando o meu caminho e o meu trabalho. Acho que li mais poesia ou sobre poesia do que livros didáticos ou livros de história, ou livros que, de alguma forma, me davam alicerce sobre arte. Então, ela sempre cruzou e atravessou muito o meu caminho. Acho que a poesia foi um viés natural na minha produção.

Sempre acreditei que se eu soubesse escrever ou tivesse uma consciência maior sobre escrita – em relação a ferramentas técnicas e científicas da própria língua portuguesa –, eu talvez escreveria poesia. Isso porque as palavras são ferramentas, assim como as imagens ou os objetos que, no caso, eu utilizo em paralelo na construção do meu trabalho como artista. A poesia se dá pelas palavras e meu trabalho se dá pela apropriação dos objetos ou sobre o significado desses objetos. Então, de certa forma, tem uma contrapartida, uma contraposição sobre a poesia.

Por várias vezes, insisti que escrevo poesia através da imagem. Quando desenho ou quando me aproprio de objetos para criar uma instalação, um objeto, isso, de certa forma, está pautado, talvez, na poesia, que eu li lá atrás, ainda quando jovem, quando tinha até uma experiência romântica sobre o mundo. A poesia foi uma primeira janela para esse mundo subjetivo, que hoje acho compreendo um pouco mais através da arte.

Eu fiquei quase obcecado por uma frase de uma poeta, na minha primeira aula da faculdade de artes: a Adélia Prado, uma poeta mineira. Ela disse que, para escrever poesia, não esperava nenhum cometa, nenhuma estrela cadente. Ela falou que esbarrava na poesia. Então, o meu universo paralelo foi muito baseado em tentar assimilar essa frase, me contaminar por ela e colocar no meu trabalho essa experiência. Os objetos do cotidiano, hoje, eles me cercam, me fazem e dão maior sentido ao meu trabalho, porque é onde eu esbarro, é onde eu toco, é onde de certa forma eu atravesso e proponho poesia.”

Eugen Bräunig (Alemanha)

“Para mim, o que é tão especial na poesia é que, mesmo sem esmiuçar ou interpretar um poema, você ainda tem aquela reação inicial, visceral à linguagem. É um meio incrivelmente sutil e complexo, e, às vezes, tudo o que sei é que um poema toca em algo aparentemente incomensurável — nossa existência no universo, a infinidade, o tempo e o espaço, o amor e a morte, a memória e a emoção, a alma, ou outras formas de vida. Gosto principalmente de poesias que contam histórias de formas não lineares, pois elas parecem muito mais próximas da natureza complexa e aparentemente desestruturada dos nossos pensamentos e emoções.

Nossas sinapses disparam constantemente em direções diferentes, formando conexões inesperadas. Podemos sentir uma tristeza profunda e, ao mesmo tempo, sentir prazer ou viver momentos de alegria. Podemos estar em uma paisagem vasta, com nossos sentidos absorvendo tudo ao nosso redor, enquanto nossa mente viaja para o passado — para alguém que amamos e de quem sentimos falta ou para um lugar que parece impossivelmente distante.

Traduzir a poesia em imagens tem um pouco a ver com a minha primeira reação a um poema – aquele sentimento visceral. Não se trata tanto do resultado de uma análise e da interpretação, sobretudo se trata de entrar em um estado de fluxo e de estar aberto ao tom e à energia do poema. Um paralelo seria um ator vestindo um figurino e entrando em um cenário. Isso provoca algo nele, e naturalmente ele começa a se mover e a reagir de forma diferente. Da mesma forma, o tom e o ritmo de um poema podem guiar as imagens de maneira intuitiva. Nesse sentido, o sentimento dita a forma — o que pode se manifestar através da ênfase na luz e na sombra, no movimento ou na fragmentação.

Isso não quer dizer que a mensagem ou o conteúdo de um poema não importem. Acho que a maioria das pessoas vão naturalmente se envolver com os poemas em diversos níveis. Por exemplo, um único verso ou mesmo uma única palavra podem ser sugestivos ou funcionar como estímulos para um leitor, dependendo de onde ele está em sua própria vida, moldando a maneira como ele vivencia o poema. Se um poema for altamente associativo, pode ser quase impossível ignorá-lo — ele dispara imediatamente um filminho na sua cabeça. Mas, basicamente, procuro nunca ser literal demais; prefiro complementar ou expandir algum aspecto de sua essência.”

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