Carta de Remy de Gourmont para Han Ryner – “A Menina que não fui”

Prolífico e recluso, Rémy de Gourmont foi um escritor emblemático do simbolismo francês entre o final do século XIX e o início do século XX. Sua obra consiste em ficções, estudos sobre religião e a contemporaneidade.

Em sua avaliação de La Fille manquée, Gourmont recorre a termos científicos vigentes na época, como “patologia” e “psicologia mórbida”. Em termos mornos, ele afirma que o tema de La Fille manquée, embora não seja novidade, é digno de ser tratado na arte. Gourmont chega a denunciar a hipocrisia de seus contemporâneos, ainda que tenha mencionado termos do campo da religiosidade e da moral, como “vício” e “Sodoma”.

De maneira pouco entusiasmada para com La Fille manquée de Ryner, ele afirma que esse texto não seria exatamente um romance, mas sobretudo uma espécie de ensaio sobre psicologia.

Carta de Remy de Gourmont para Han Ryner, publicada no n° 78 dos CAHR (Cahiers des Amis de Han Ryner), p.6 e em Remy de Gourmont, correspondance, vol.2, 1900-1915; notas e prefácio de Vincent Gogibu. Paris, Éditions du Sandre, 2010, p.90.

Paris, 28 de abril de 1903

Somente agora, prezado senhor, acabo de ler seu La Fille manquée, e eis aqui minha apreciação, visto que o senhor deseja conhecê-la.

Ao que me parece, o tema se presta mais a um estudo de patologia mental (ou de psicologia mórbida, se preferir) do que a um romance. Nas compilações especializadas, li memórias análogas a respeito de tais desvios do instinto genital. É interessante, pois isso permite compreender uma multidão de fatos que classificamos como anormais, e que são nem mais nem menos anormais do que aqueles que o senhor se propôs a explicar do ponto de vista psicológico.

Toda a questão é saber se o material escolhido pelo senhor pode ser material para a arte. E por que não? Domenichino, Andrea del Sarto, Francesco Vanni bem pintaram histéricas ou demonômanos, espetáculos certamente muito alheios à estética corriqueira. A loucura é lugar-comum na literatura. E por que não a patologia erótica? Um onanista não é muito atraente, tampouco um leproso.

Aqueles que degustam A Religiosa [de Diderot] ou as Confissões [de Rousseau] não deveriam ser cruéis para com o livro do senhor. As cem primeiras páginas fazem parte de uma psicologia muito curiosa. Os outros episódios me pareceram um pouco longos.

Haverá, talvez, um ponto de vista moral. Os internatos são horrendas escolas de devassidão, e o senhor tem razão em dizê-lo; e ali a devassidão costuma ser sentimental: ainda é verdade, e é penoso, embora decerto irremediável.

Mas a hipocrisia exige que se cale a respeito desse tema, e que se continue a cultivar, sob vigilância do Estado ou da Religião, todos os vícios de Sodoma. Portanto, não me uno àqueles que depreciam seu livro, no qual creio enxergar apenas um estudo curioso, que se trata inteiramente de psicologia mórbida.

Acredite-me, prezado senhor, seu devoto confrade.

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