O Narciso cor-de-rosa

Em 1971, James Bidgood, diretor até então anônimo, lança Pink Narcissus. O filme ficaria para os anais da cultura gay masculina e da estética camp, segundo a definição de Susan Sontag no ensaio Notes on “camp”, de 1964. Ainda que timidamente, o filme ganha cada vez mais notoriedade, sobretudo entre o público LGBTI+, por razões tão gritantes quanto sua própria estética. Recentemente, Blank Narcissus, de Peter Strickland, curta-metragem claramente inspirado em Pink Narcissus, foi exibido na plataforma de streaming MUBI. Nesse semi-documentário, apresentado como se fosse verídico, certo diretor de filmes pornográficos dos anos 1970 comenta, entre imagens homoeróticas, sobre suas realizações passadas.

Com seus cenários e figurinos exagerados, com seus tons berrantes, trilha sonora dissonante, e tendo como elemento principal e quase exclusivo a estética, Pink Narcissus é um curta-metragem mudo, que pode ser considerado uma espécie de poema visual, no qual praticamente não há enredo. O espectador entra na mente de um michê, interpretado por Bobby Kendall, fechado nas paredes de seu quarto. Enquanto espera por seus clientes, ele dá ensejo a diversas fantasias, inclusive no sentido mais ingênuo do termo. O “Narciso” aparece vestido de toureiro, cowboy, gladiador romano, homem grego de túnica etc.: hipérboles masculinas, todas elas representadas com sensualidade andrógina.

James Bidgood foi descoberto pelo escritor Bruce Beaderson. Sabe-se que o filme levou sete anos para ser concluído e foi lançado sem a aprovação do diretor. Diga-se de passagem, isso foi uma escolha do próprio Bidgood, perfeccionista e discreto.

O preconceito contra a comunidade LGBTI+ da época, intensificado pela devastação causada pela aids no início dos anos 1980, acabaria relegando essa película, originalmente filmada em super-8, ao esquecimento. Se o filme foi descoberto por um escritor entusiasta, e é considerado literário justamente por seu excesso de sugestões, que parecem vir de um delírio frenético (lembrando um pouco a décadence fin de siècle à qual vamos chegar), esses são justamente os motivos que fazem dessa obra cinematográfica algo sui generis. Em Pink Narcissus, as imagens trazem algo evocatório e sensorial, algo que só as palavras conseguem suscitar; sentidos tão particulares ao espectador que só os significantes podem sugestionar, em suma, algo que só a ficção literária e filmes como esse proporcionam. Tornou-se, portanto, um prato cheio para escritores e psicanalistas, para priápicos e drag queens, bem como para quem quer que caia nas tentações e encantos do mundo gay.

No próximo post, falaremos sobre a nossa publicação de O Beijo de Narciso, de Jacques d’Adelswärd-Fersen (ou simplesmente “Fersen”) e sobre a relação entre as duas obras a partir da figura mitológica e psicanalítica de Narciso.

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