Resenha de Rachilde sobre “O Beijo de Narciso”, de Jacques Fersen

Escritora prolífica e não isenta de polêmicas, Marguerite Vallette-Eymery (1860-1953), sob o pseudônimo “Rachilde”, escreveu várias resenhas para o Mercure de France com seu estilo único e inovador, estranho e mordaz. Entre elas, uma crítica à Menina que não fui, de Han Ryner. No post de hoje, leremos a apreciação de Rachilde sobre O Beijo de Narciso, de Jacques Fersen. Aqui ela menciona outro romance dele, Une jeunesse, que, a seu ver, não é tão bom quanto O Beijo de Narciso, ao qual não poupa elogios.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rachilde, Mercure de France 70, n° 248, 16 de outubro de 1907, pp. 699-700.

Une jeunesse [Uma juventude, não traduzido para o português], de Jacques d’Adelswärd-Fersen —

“E depois de tudo o que ele me disse, depois de tudo o que soube, não somente não tenho do que enrubescer com a paixão que sentimos um pelo outro, como inclusive me encorajo por ela! A História está lá, completíssima, para provar que povos, civilizações e épocas a toleraram, a encorajaram, a exaltaram. Não está distante o tempo em que se construiu uma cidade de mármore e de prata, única, suntuosa, à margem do deserto, em homenagem a Antínoo. Tio Jean! Tio Jean, não preciso de ser perdoado, pois ainda o amo!”

É assim que o herói de Une jeunesse se expressa a respeito de alguém que pintara seus amigos. Ele está muito certo de que, em todas as épocas, em todos os países (principalmente nos quentes), as paixões mais excessivas foram em [sua] homenagem; e, inclusive, chega a ser uma consolação para as mulheres que acabam de ler Prostituée, de Victor Margueritte, a lembrança de que o belo Antínoo foi uma das grandes cortesãs da Antiguidade. Chegará a vez de cada um nesse papel humilhante. Mas por que esse pot-pourri de sentimentalismo? Será que Nino, o jovem romano, mais belo que a luz romana, também ama sua prima Michaela com um amor tão excessivo e tão fugaz quanto [aquele]? Esse Nino me dá a impressão de ser um gato egoísta, repousando afetadamente suas patas de veludo em qualquer lugar para fazer com que os outros cuidem dele e passem as mãos em seus cabelos de angorá! Terá se esquecido de que, para esses belos senhores, tentar uma aventura com uma mulher consiste em uma infração? Prefiro acreditar que ele ainda está na idade das inocências pérfidas. Caso se torne padre, aprenderá melhor sobre o horror da eterna inimiga e poderá fundir melhor todas as paixões naturais num só amor sobrenatural por um pálido efebo crucificado.

A Nino, prefiro o belo e indiferente Milès, criança devotada ao templo de Adônis. Esse aí está mais perto de ser estátua do que homem, e sua impassividade o torna um deus. Em seu egoísmo de ídolo, ele não se engana, ama a si mesmo piamente, francamente, e verá gestos comovidos somente perante a imagem de seu Sósia. Das duas novelas, pela intransigência que a moral desse tipo de narrativa representa, a melhor é, de fato, O Beijo de Narciso. Escrita com delicadeza, com erudita precisão de detalhes e pesquisa muito bem versada nas cores locais, essa fração de prosa quase mereceria um prêmio Goncourt. Julgo menos perigoso ouvir falar bem dos afetos contra-natureza do que ouvir a mesma ladainha sobre adultérios imbecis em francês mal escrito. Ora, além do mais, é relaxante, tranquilizante, tônico. Enquanto eles arrulham entre pombos, deixarão as pombas em paz. Uma maneira como qualquer outra de diminuir o exército das sátiras… para senhoras.

Tradução: Régis Mikail
Preparação: Eduardo Valmobida

Imagem: Rachilde (Marguerite Eymery) (1860-1953), photographie par Otto Wegener, Paris, vers 1885

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