Os Beijos dos Narcisos

Em meio a tamanha carga simbólica, o filme Pink Narcissus, do qual falamos no post anterior, traz uma semelhança com o romance O Beijo de Narciso, a saber, sobre a representação da sensualidade, o desejo e seu (des)controle. Assim, a Ercolano acredita que nossos leitores de hoje percorrerão com o mesmo prazer dos leitores do início do século 20 cada página dessa melancólica história de paixão e de abuso.

Quase um século antes, nos anos 1900, um jovem aristocrata francês foi expulso de sua Paris natal sob acusações escandalosas. Em virtude de sua fortuna, ele pôde construir para si, literalmente, um castelo de sonhos na ilha de Capri, na costa amalfitana. O barão Jacques d’Adelswärd-Fersen já tinha então escrito e publicado O Beijo de Narciso, romance que conta a história de Milès, um rapaz fenício que pode tranquilamente ser imaginado tão belo como o Narcissus do filme. Desde o início, a problemática da trama é lançada: sua extrema beleza é comparável à de uma divindade. Também chamado de “o pequeno deus de prata”, Milès é um predestinado às coisas divinas, como os outros enxergam em seu esplendor. Seus pais o enviam, então, ao templo para torná-lo sacerdote junto aos devotos de Adônis-mãos-de-prata, na Grécia. Porém, o esplendor do rapaz é tamanho que desencadeará loucura e até morte. O destino de Milès, traçado pelos deuses ao qual ele é comparado — pois se trata justamente da fatalidade, entidade tão cara ao mundo grego antigo — lhe reserva miséria e solidão. Narciso descobre, já longe de sua pátria, que sua família e suas terras foram arrasadas. Indefeso, ele se vê de repente preso em um mercado de escravos, onde cairá nas garras de um Apoxiomenos, um arquiteto beberrão, passando pelas mãos de sua cortesã favorita, Briséis, e de um renomado pintor de templos, Ictinos.

Assim como o próprio Narciso do filme, nosso Narciso/Milès também só tem a si mesmo no mundo, de modo que suas concepções de amor podem ser, sob certo ponto de vista, consideradas frutos de um narcisismo, em última instância. Como podemos refletir a partir do prefácio “O Beijo de Adônis”, de Rodrigo Lopez, ao Beijo de Narciso, tanto o Adônis mitológico quanto Milès passam incessantemente, e contra suas vontades, de um amante ao outro. Ambos encerrarão suas vida na terra, dando forma, no momento final, a um destino semelhante ao do Narciso mitológico.

Embora o romance não seja diretamente relacionado à questão psicanalítica do narcisismo, ele é, sobretudo, identificável com a figura do Narciso mitológico (o romance foi escrito pouco antes dos estudos de Sigmund Freud), que admira sua beleza no reflexo de um lago até acabar por morrer. Assim, O Beijo de Narciso traz uma reflexão interessante sobre a libido, que no caso de Milès, nasce a partir de si mesmo e para si mesmo: no fim das contas, o outro, objeto de desejo, é necessariamente o próprio reflexo. Ora, quem, senão a si mesmo, poderia o próprio Narciso, solitário e preso como um pássaro na gaiola, amar?

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